segunda-feira, 13 de abril de 2009

Nora de Timor


A Infantil e o ATL entraram em férias de Páscoa. E eu fui até ao Suai, mais propriamente ao suco de Lepo em Covalima. Há imensas aventuras. No entanto, resolvi ocultar alguns Kinder Supresa e limitar-me apenas a contar o decorrer de uma cerimónia tradicional. Vou-vos começar aliás pela noite do dia antes.
Chegámos a Lepo eram 22h, após uma viagem de 10 horas de estradas sinuosas e esburacadas. No dia seguinte, a população iria colocar os primeiros pilares de uma casa que servirá como centro de mediação (espécie de tribunal local). Quando cheguei, os anciãos (chefes de aldeia, chefes de suco, príncipes, representantes das famílias mais importantes) estavam reunidos na sede do suco. Discutiam sobre como iriam fazer a cerimónia no dia seguinte. A questão da mediação é um assunto essencial no que toca a timorenses, uma vez que ocorrem frequentemente conflitos por motivos familiares, propriedades, etc.. Discutiam e não discutiam. Eu estava mesmo cansada. Mais uma vez, em Timor são tempos diferentes, são tempos livres diferentes, são discussões diferentes. Apontaram-me o quarto (na sede do suco), que consistia numa armação de cama, com tábuas por cima (tipo estrado). Não havia colchão, não havia lençóis, não havia almofada. Apenas uma tábua de madeira, onde deveriam dormir 5 pessoas. Pus-me lá no grupo, continuando a ouvir as vozes a discutir, mas às 5h decidi levantar-me porque não aguentava mais das costas. A cerimónia deveria começar às 8h, mas começou às 10.30h (e também porque não tinha ficado tudo decidido na noite anterior, o que se verificou durante a cerimónia em que ainda estavam decidir o que iria acontecer no momento). A cerimónia começou com uma roda composta pelos representantes das famílias mais importantes e por liurais (príncipes). Nessa roda começou-se por pôr no centro o machado, catana e os ingredientes da mama (aquela coisa que eles mascam). Começaram por falar com os espíritos para ver se autorizavam que fossem todos para a floresta buscar os pilares em madeira. Os espíritos autorizaram. Penso que depois se passaram os ingredientes da mama para que todos mascassem. Pegaram então numa galinha porque tinham de “aquecer” o machado e a catana. Esganaram então a galinha e quando morreu, cortaram-lhe a goela, derramaram o sangue para que o sangue dela “aquecesse” o machado e a catana. Depois tiraram-lhe as vísceras, porque nas vísceras havia um sinal que indicava se os espíritos concordavam com a partida para a floresta e se haveria sucessos ou desgraças. Nas vísceras estava o sinal, uma pontinha saliente que indicava para o céu. Era este o sinal: se estivesse virada para baixo, significava que a viagem não iria correr bem. Chegou a altura de beber o vinho que foi passado de mão em mão entre os anciãos. A última pessoa a beber do copo teria de carregar o machado e a catana. Decidido esse aspecto partimos todos em procissão até ao local onde estavam as madeiras. Ali mandaram-me entrar numa daquelas tendas de venda e vestiram-me: um tais para baixo, a cabala para cima, colares, brincos e até no cabelo fizeram-me os tradicionais puxos com os ganhos de moedas. Depois mandaram-nos para o meio dos pilares e deram-nos a mama para mascar. A partir daí fui à frente da marcha, de regresso ao local da construção. À minha frente ia o homem do bombo, juntamente com o chefe que carregava o machado e catana. Atrás iam os homens que carregavam os pilares, estando ligados às mulheres através de uma corda. As mulheres “puxavam” os homens. O trajecto era de cerca de 7 minutos e, mesmo assim, fizemos 2 pausas. Não pelo cansaço, porque a cada pausa eram realizadas danças. Na 1.ª pausa aproveitei para cuspir discretamente a mama, porque já não aguentava aquele sabor azedo na boca. Ao final da 2.ª pausa, pediram-nos para comprar duas garrafas de vinho e dois maços de tabaco. A nós juntou-se uma cabra que iria servir de sacrifício, e ao longe já víamos o cão e o porco. Tivemos de tocar na cabra para abençoá-la. Continuámos até o local da construção. Aí deram-nos novamente a mama e com o cuspe tive de abençoar os pilares. Houve uma espécie de cerimónia com a mama antes de nos ser servida (dança, entrega ao liurai, etc.). Eram 14h, sob um sol ardente e já não aguentávamos. Deram-nos descanso de almoço. Mas de facto estávamo-nos a sentir mal, quase com uma insolação e tínhamos de voltar para Díli. O almoço foi arroz com a galinha esganada. Comecei a negociar, porque tínhamos mesmo de ir embora. Lá concordaram em apressar a parte em que de facto era necessária a nossa presença. Quando regressámos ao local da construção, vi o cão, morto, com um rasgo no pescoço e uma pedra toda ensanguentada ao lado. No espaço do terreno de construção, mataram o porco e tiraram-lhe o sangue para um copo. Depois foram buscar a cabra e também a mataram, passando também o sangue para um copo. A partir daqui não percebi muito bem, mas com o sangue dos dois animais decidiram que um lado da casa seria o lado “mulher” e o outro “homem”. Depois disso, deixaram-nos partir, continuando eles a festa. Haverá outra cerimónia, mas desta vez com um búfalo, aquando da inauguração da casa.
Para além da magnífica experiência (extremamente cansativa porque eu estava como intérprete, e foram muitas horas), ficaram as marcas de um dia de sol (apesar de ter posto protector).
Com isto tornei-me também "feto foun" (nora) de Timor, de acordo com a população que me saudou imenso pelo grande amor que aquela comunidade tem pelos portugueses.

5 comentários:

  1. (venho muitas vezes ler-te e so hoje senti que tinha palavras para te responder)

    que delicia ler historias,aventuras, novidades, frustraçoes, alegrias, crescimentos, pequenos gestos, sorrisos, saudades, tradiçoes, pensamentos desse (teu) lado do mundo!

    queria so deixar um abraço apertado de saudades . bom saber-te bem minha querida!

    Beijinho kinder
    Leonor

    ResponderEliminar
  2. Tudo de bom, minha querida! Muita Força! Muito reconhecimento pelo teu exemplo! Estamos Juntos. Artur Ribeiro.

    ResponderEliminar
  3. Tudo de bom, minha querida! Muita força! Muito reconhecimento pelo teu exemplo! Estamos Juntos.

    ResponderEliminar
  4. Estás a ver... e eu que moro no Suai há 3 anos ainda não vivi nenhuma experiência destas.
    Apesar do cansaço deve ter sido uma experiência única!!!!!
    Parabéns pelo te trabalho e obrigada por partilhares as tuas experiências.
    Beijinhos

    ResponderEliminar
  5. Mas que interessante! Do ponto de vista animal foi um verdadeiro massacre...Aproveito para lhe contar que quando ainda dava aulas no Instituto Politécnico de Beja, vieram comigo aqui a casa , em Sines, uns alunos timores que lá estavam em enfermagem. No meu quital tenho um vaso com chá-principe. E um deles disse-me logo com os olhos a brilhar: "Olhe, professor, lá em Timor, é com isto que temperamos a carne de cão !". Ao que eu respondi, com um sorriso amarelo: Cá é mais para chá....
    Gostei muito de a ver com um tais feto e uma cambaia. Enfim, nem parecia uma malae... Ita hanessan timor oan ida kapaz.
    Augusto Lança-Sines

    ResponderEliminar